Esse homem tinha tudo para ser o contrário do que é hoje. Porém, juntando o pouco que sempre teve durante a vida cresceu e às vésperas de sair da PM desfaz o mito de que esse profissional é diferente dos demais.
No relógio, exatamente 5h21. Do fogão partem os primeiros aromas de um café fresquinho que está sendo preparado para servir de combustível para toda uma família faminta por um dia de trabalho. No seu comando está um jovem senhor, com seus 48 anos. No inverno de 1959, sua mãe Rita jamais imaginaria que no futuro aquele fruto de seu ventre estaria ali firme no sustento de pessoas, que cresceram dignas espelhadas em seu exemplo.
Jussiê Lopes da Silva, mais conhecido pelos amigos e parentes como “Ciê” é um homem tranqüilo e de poucas palavras, mas gestos pequenos e nobres que o fazem ser uma figura especial. Às 5h45 já tem comprado o pão na mercearia do seu vizinho. O cheirinho do café vai despertando as primeiras pessoas na residência 95, da Travessa 12 de Outubro na cidade de Iguatu, localizada a 600km da capital do Estado, Fortaleza. A primeira que se levanta é Gilzete, sua esposa, conhecido por todos como “Poeta”. Casaram-se na primavera de 1983 e tiveram dois filhos.
Ao contrário de Jussiê, ela tem um gênio um tanto mais forte. É de falar. Ele é de resolver. Ela se sente amada por ele, mas tenta transparecer que não. Ele a ama de verdade, nota-se pela forma como a trata. Enfrentaram algumas dificuldades antes do matrimônio. A família dela, apesar de viver modestamente não concordava com a união por ele ter vindo de classes populares e sem insumos concretos para oferecer uma vida digna à sua futura família. Acostumado com desafios conseguiu enfrentar as “feras” e assim ter ao seu lado sua maior companheira de vida.
Logo após é a vez da sua mãe, Rita, se levantar. Ela nunca pôde oferecer-lhe muita coisa, já que jamais manteve nenhuma relação estável. Inclusive o pai do senhor Jussiê nunca o registrou. Ele também nem fez muita questão. Conta-se que um dia ao solicitar a assinatura do pai para um documento, este o chamou de afilhado por estar diante de pessoas da “sociedade” iguatuense. Ele não se conformou e preferiu não ver em seu certificado de nascimento a declaração do pai. Depois de um tempo sua mãe enfrentou problemas mentais sérios o que levou a “adotá-la” de vez e assumir assim as responsabilidades para com ela.
Já passavam das 6h do dia 17 de março, estava na hora de ir ao mercado central fazer as compras do dia. Para a geração moderna é até um pecado acordar a esse horário para alguma obrigação do lar, mas “seu” Jussiê está acostumado com esse tipo de tarefa em prol da família: “acordava eu e meu irmão Demontier por volta das 5h e íamos pro rio pescar. Era pensando no almoço que comíamos a ‘merenda’ (café-da-manhã)”.
Ao chegar no centro da cidade montado em sua inseparável bicicleta vermelha Jussiê é muito cumprimentado. Sua patente de cabo da polícia militar lhe trouxe alguma popularidade, seja para ajudar um amigo embriagado a não ir pra cadeia ou acalmar os ânimos de outro acolá. Apesar de ter alguns desafetos ele possui mais pessoas que simpatizam com sua figura. Daí sai comprando uma carne na barraca de um amigo, ganha um maço de cheiro-verde de outro e assim vai montando uma pequena feira. Está de volta por volta das 7h30. Nessa hora já estão de pé, indo para o emprego sua filha Mônica, mais velha e Nayara, uma sobrinha que mora na sua casa.
Não perde tempo e vai até o quartel da cidade, que não fica longe da sua casa, pegar outro grande companheiro, seu carro. Um Corcel II da década de oitenta, que está mais para sucata que veículo, mas pelo qual sente um grande carinho. Volta para casa.
Por volta das 8h30 ele já está se preparando para uma nova viagem ao centro. Agora é hora de resolver outros problemas mais burocráticos como pagar as despesas que se vencem na data, mandar algum dinheiro para seu filho que mora em outra cidade para continuar seus estudos e, porque não, fazer sua fezinha diária no jogo do bicho. Ilegal mas popular. Sua mulher o aconselha jogar no cachorro, mas ele vai no elefante.
10h30 mais uma vez está
Superprotetor como só, criou seus filhos assim. Sabe o que se passa de verdade nas ruas, tanto pelo que viveu quando criança quanto pelo que vive como profissional. Teme que alguém possa fazer algum mal aos seus queridos: “Na minha profissão lido com todo tipo de gente, e eles me marcam, marcam minha família, tenho medo de que algum faça mal a eles”.
Acostumado a sentir necessidade da comida aprendeu a fazer suas refeições cedo. 11h30 a comida está servida. Na verdade come pouco, não se sabe o motivo. Exagera na gordura. Gosta de coisas fritas. Medo de um infarto? “Não, medo de passar fome outra vez”.
Jussiê teve sim uma infância com privações. Quando falo em privações, não é ficar sem roupa nova no natal ou então não comer chocolate na páscoa. É sentir sua barriga roncar sem saber o que irá comer mais tarde, sentir seu rosto cansado desde muito jovem, sentir uma parte da sua vida perdida.
Depois do almoço, que tem de ser com a família reunida, deita-se e liga seu radinho de pilha. Escuta “A Hora do Povo”, um programa policial muito popular naquela cidade. Fica chateado com a maioria do que é dito pelo despreparado locutor e suas críticas ferrenhas a atuação da polícia, mas mesmo assim não deixa de ouvi-lo religiosamente. Depois pega o jornal, que faz questão de comprar quase todos os dias. Lê muito. É incrível como uma pessoa que só fez até a 4ª série do ensino básico é tão ligado e entendido do que está ao seu redor. Não é um mestre ou professor, mas não consegue ser passado para trás tão facilmente. Fala com prioridade a seus filhos que nunca deu uma moto, ou um carro a eles porque só dá o que é importante: a educação. Ninguém mais que ele sabe disso.
14h30, hora de voltar ao centro, fazer mais uma fezinha. Havia perdido no sorteio da tarde, mas alimentava a esperança de que o da noite seria bem diferente.: “Dessa vez vai dar cachorro, a milhar é
Apesar de muito calado, Jussiê possui um senso de humor raro. Sabe lidar com as entrelinhas dos acontecimentos tirando sempre boas piadas da realidade. As pessoas às vezes o temem pela sua postura séria e seu jeitão de lidar com o que acha errado, assim ele acaba afastando muita gente de si, mas quem o conhece de verdade diz que isso é necessário para que ele possa manter o respeito na sua profissão. Ele não é má pessoa, longe disso, talvez um pouco calejado demais pela vida.
“Hoje é dia de patrulha, vou levar você para dar uma volta pra ver como se dão os procedimentos”, assim sugere o meu trabalho para a noite. Eu concordo de fato, não posso ficar o tempo todo devido às normas do trabalho da polícia e também porque ele não quer que me exponha. A patrulha é o carro que passa determinado período do dia fazendo uma ronda pela cidade com o intuito de garantir a segurança e o bem-estar da população. Sua carga horária é de doze horas. Ele pega o serviço às 19h e sai às 7h. Nunca teve medo do trabalho. Aliás sempre foi seu melhor amigo, pois só á ele pôde recorrer nos momentos mais difíceis. Já fez mala pra vender, trabalhou numa marcenaria, vendeu frutas na rua, fez diversos “bicos”, entre outras coisas.
“Seu” Jussiê entrou na polícia no final da década de 1970. No tempo que não era preciso concurso público. Na época em que importava a habilidade do policial para lidar com a violência e assim, à sua maneira, fazer justiça, numa terra um tanto sem leis como é o interior. Ele fica todo o tempo se “policiando”. Tudo é levado em consideração: “Se prende o filho de alguém importante a gente paga o pato, se bater em algum ‘vagabundo’ pra prender cai os ‘Direitos Humanos’ em cima da gente”. Ele já sofreu algumas retaliações por conta de casos como esses: uma vez prendeu o filho de um ‘figurão’ da cidade, que estava em alta velocidade em seu carro zero atormentando a população. Ao conseguir parar o veículo e apreendê-lo o sujeito disse que ele ia arcar com as conseqüências daquele ato. No outro dia seu comandante o chamou para comunicá-lo que iria sair da função que estava exercendo, passaria a trabalhar no presídio municipal, todas as noites, por um bom tempo. Obedeceu, era o que podia fazer, mas questionou e continua a questionar.
“Não sei como ‘Ciê’ tem coragem de peitar assim”, diz um companheiro de patrulha, mas quando vê algo errado ele reclama. Já foi eleito algumas vezes soldado padrão e teve sua foto estampada na entrada do batalhão.
Depois de algumas voltas na cidade ele me deixa de volta no local da partida. Agora é entregá-lo a Deus e torcer para que a noite seja tranqüila.
Na calçada da casa 95 tem algumas pessoas reunidas, elas falam de tudo o que a imaginação permitir. Pra não ficar á toa pergunto algo sobre a figura do senhor Jussiê. Uma diz que ele é gente fina, outra que é fechado. Uns preferem nem falar, têm medo. Mas, apesar de tudo, parece consenso uma coisa: “É um homem muito responsável que cuida dessa casa como poucos fazem!’. Dona “Poeta” fica meio que revoltada e diz que ela é quem faz de tudo por aquele lugar, mas logo se derrete em elogios e diz que não vê sua vida sem aquele homem.
A noite passa e, com expectativa espero o retorno de Jussiê. Já são 7h30 do dia 18. Ele retorna vestido com sua farda marrom e com o rosto cansado. E como foi a noite? “Rapaz, no mais foi tudo em paz”. Por ser noite de segunda-feira não havia acontecido nada de muito especial mesmo. Alguns ‘trombadinhas’ por ali. Outras brigas de casal por aqui. No fim um prolongado suspiro demonstra toda a carga de estresse que paira sobre aquele homem sereno, ele já não tem os vinte anos de outrora. Um dia de folga. É o momento de recarregar as baterias para outra nova jornada.
E o futuro? “A Deus pertence!”. Sabe-se que ele quer logo parar com essa rotina da polícia. Está cansado, suas costas doem como nunca. Pretende não parar depois da aposentadoria. Pensa em comprar uma “besta” para fazer transporte de passageiros entre Iguatu e Juazeiro do Norte. Pensa em montar um próprio negócio. Pensa
Dois dias depois de conhecer a rotina deste homem toca o meu telefone:
- Tudo bem?
- Tudo.
- Adivinha o que aconteceu?
- O que “seu” Jussiê?
- Recebi meu afastamento (aposentadoria) por tempo de serviço. To ligando pra você colocar na matéria.
- Que bom “seu” Jussiê, fico muito feliz!
- Obrigado meu filho. Boa sorte!
- Abraço. Tchau.